Perturbando o mar do esquecimento
Estávamos à mesa entre quitutes, descansando de um dia de estudos e trabalho.
Em meio às conversas, minha atenção é pinçada para o novo tema.
- “Eu ainda lembro quando era criança e nem podia entrar na sala, quando tinha visita. Meu pai dizia que não era lugar pra mim.”
- “O meu? Bastava arregalar os olhos que eu já me endireitava. Ele nem precisava falar alguma coisa. Só aqueles olhos...Deus, ainda lembro daqueles olhos! aqueles olhos arregalados já me botavam medo!”
- “Eu apanhei. Toda semana levava... vara, castigo, chinelada... o que tinha na mão ele jogava. Hoje não bato no meu filho. Nunca precisei bater!
- “É... os tempos mudaram. Olhe só... criança tá em todo lugar, conversa, participa... não pode apanhar.” - “As crianças de hoje têm muito mais liberdade do que no meu tempo.”
E assim a conversa fluía. Lembranças dos tempos infantis e da relação com os pais, ao mesmo tempo em que paravam para descrever os pais que são, hoje. Oscilavam entre aparentes contradições: “fui criado assim e estou bem!” Versus “fui criado assim e não quero repetir este tipo com meus filhos.”
Por este recorte, de uma conversa de Happy-hour, podemos ver, de maneira ainda que simples, que o ser criança e o ser pai não são dados, ao nascer.
A criança que fomos, a criança que hoje tempos; o pai que tivemos, e o pai que você é hoje, difere, em muito, histórica e culturalmente. Não nascemos prontos para assumirmos quaisquer papeis e demandas da vida em sociedade! Tampouco nascemos com manuais de instrução que orientem os nossos cuidadores. É preciso aprender.E, neste sentido, a arte, ciência e a educação participam criando sensibilidades. Se aprenderemos? É outra questão, mas, por hora, vamos pensar – elas nos dizem que não é natural ser pai.
Voltando à conversa daquela sexta, observei que para os dialogantes seria mais fácil repetir os modelos vividos quando crianças: “se deu certo em mim, se me formou homem de família e trabalhador, então é porque meu pai estava certo. Farei igual.” Seria mais fácil, mas há um desconforto latente nas falas, um quê de assombro, uma espécie de suspeita que – não é possível, ou certo (?), repetir aquele padrão.
Seguíamos o fluxo da conversa e fiquei a pensar que aqueles pais estavam às voltas com as novas noções de direito e educação, religião e saúde – e se estranham – que pai devo ser? Como é ser pai? Bato ou não bato? Castigo ou não castigo? Devo ser sério ou brincar?
Ouso dizer que minha Happy-hour, minha hora feliz, se estabeleceu justamente neste momento, em que as águas do Rio Lete, o mar do esquecimento, foram perturbadas. Os participantes não se banharam neste rio que tudo faz esquecer, ao contrário. Buscaram do fundo dos seus mares as lembranças infantis. Ah.. e neste ato, como os gregos já nos ensinaram, o oposto do esquecimento (o beber das águas e do banhar-se no Rio Lete) é ir em direção à Aleteia – a verdade! Quer happy-hour, hora mais feliz que esta? Por hora, não!
Para esta que escreve estes questionamentos paternos soam com advindos de pessoas que, pelo menos, questionam uma forma de ser pai e se devem, ou não, simplesmente repetir. Estes pais parecem ir na direção de uma (re)elaboração. Não estavam desconstruindo um passado, não. Era como se estivessem buscando este passado e o questionando, confrontando tradições, olhando para o passado para ressignificar o seu presente. Passado e lembranças, repetições e elaborações sobre o ser pai.
Ser pai é um processo dinâmico. Dito de outro modo: Pais, quando vocês se permitem perturbar as águas do esquecimento e trazerem à tona, fazerem emergir estes questionamentos quanto às crianças que outrora foram e questionarem os pais que um dia tiveram como modelo – vocês estão se dirigindo à Aleteia, à verdade.
Esquecer é o oposto da verdade, ouçamos a sabedoria grega revisitada por Sigmund Freud.
Sim, Pais... trazer à memória e enfrentar o que vier, com as dores das chineladas, a solidão dos cantinhos dos castigos e ousar estranhar tudo isso e se perguntar – “que pai sou, que pai quero ser hoje para os meus filhos” – trazer a memória e se questionar é estar mais próximo da verdade, da sua verdade – um pai sensibilizado pelos avanços dos direitos, das artes, da educação e da ciência.
A você, que ousa não esquecer; a você, que toca nas águas do mar do esquecimento para questionar, (re)construir e ressignificar, desejo um Feliz – todos os dias – de paternar.
Dâmaris Batista é Psicóloga Clínica damarisobs@gmail.com (48) 999077700
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